Autor: Fabrício Roveri (Pudoca)

refAinda em minha infância pude presenciar os cultos promovidos pela Igreja Batista, de características evangélicas.

Boa parte da argumentação usada por lá em prol da hipótese de deus era pautada em um ritual chamado de “testemunho”, onde o fiel falava, em público, sobre sua conversão.

Um verdadeiro show de evidências anedóticas, onde após cada relato o showman (ops, quis dizer: “pastor”) inflamava a platéia com aplausos fervorosos e um sentimento coletivo de unidade muito peculiar.

A própria idéia da necessidade de argumentar a favor de uma crença pautada na fé dogmática, ainda que com pobres evidências anedóticas, hoje me parece incoerente. Mas desde então, eu  já julgava os aplausos que o procediam como merecidos – ao menos pela coragem que o indivíduo tinha que possuir para falar em público tanta coisa sem sentido.

Com esse texto pretendo “dar o troco”, principalmente aos oradores teístas com verve cômica, que insistem em arrancar risos de sua platéia com o exemplo hipotético do ateu clamando por deus durante uma pane em um avião.

Tive a (in)felicidade de experimentar uma situação que realmente colocou à prova minha crença naturalista, e quero dar meu “testemunho”.

Primeiro, é necessário contextualizar: não tive um momento na vida em que “decidi” ser ateu, como costumam supor os crentes incapazes de compreender nossa visão. Uma pergunta sobre “quando você soube que era ateu?” soa-me tão vaga quanto poderia soar o mesmo tipo de pergunta referente à minha sexualidade (i.e: “quando eu soube que tinha uma inclinação heterossexual”?). O ateísmo para mim foi uma evolução natural e gradativa de minha compreensão do mundo.

É claro que minha veia científica me obriga, de tempos em tempos, a questionar o modelo que construí. Houve momentos em que, encantado com um pôr-do-sol em uma praia deserta, fui inflamado de tal forma pelo esplendor natural que tive que rever meus conceitos. Rever, para então concluir a mesmíssima religiosidade einsteniana presente em todos os naturalistas. Espero que a senilidade não me roube esse direito em minha velhice.

Foi dentro desse contexto que tive a malfadada experiência. Um princípio de ataque cardíaco e que só ficou no “princípio” porque coincidentemente eu estava dentro de um hospital, cuidando de uma inofensiva inflamação na garganta.

Após sentir uma paralisação total de minha face e membros, fui levado às pressas para uma sala de atendimento, onde fui cercado de biombos, bombardeado com remédios e ligado a uma maquininha que media meus batimentos cardíacos, que já ultrapassavam os 140 por minuto. Dois médicos me acompanharam por um bom tempo, com o desfibrilador ao lado da minha maca.

Durante toda a experiência, fiquei completamente acordado e lúcido. Como mostrava preocupação ao perguntar insistentemente sobre meu BPS cardíaco ao médico, ele recomendou que eu ficasse em silêncio e tentasse ao máximo relaxar para contribuir com o processo. Questionei se havia risco de vida, e a resposta foi afirmativa (não pretendo aqui levantar discussões acerca da ética dessa atitude, mas eu a considerei correta. Parece-me hoje que eu estava frente a um discípulo do Dr. House).

Então, relaxei. Olhei para o teto branco acima de mim, e tentei compreender o pânico que tentava me dominar. Foi a primeira vez que senti a presença da morte, e confesso que questionei a possibilidade de apelar ao todo-poderoso. Mas a resposta que tive da minha razão foi:

“Não! Você foi longe demais, além do ponto de desistência. Nem todo o seu desespero e imaginação podem mais aceitar uma mínima probabilidade da existência de algo sobrenatural. Assim é a vida.”.

A partir desse pensamento,  considerei seriamente a probabilidade de que estava vivendo os últimos momentos da minha vida e, portanto, de minha consciência. Era extremamente sábio escolher o que pensar nesses instantes tão preciosos.

E tudo o que consegui sentir foi um júbilo indescritível por ter vivido. Um sentimento de gratidão inexplicável por ter feito parte disso tudo. Não havia mais medo algum. Eu estava completamente em paz e completamente satisfeito por ter experimentado a vida. Pensei nas infinitas possibilidades de combinação de DNA que nunca acontecerão – nos pobres homens e mulheres que nunca terão o direito de existir. E ali, frente à morte, senti a felicidade de quem ganha na loteria.

Essa felicidade trouxe mais um pensamento, tão curioso quanto engraçado: se escapasse daquela, nunca mais teria vergonha em admitir publicamente meu ateísmo. Ao contrário, seria um propagador dessa idéia! Ri e chorei simultaneamente.

Claro, eu poderia ter atribuído a deus a inflamação na garganta que provavelmente salvou minha vida. Mas passei longe disso e hoje faço parte da UNA.

Assim como os crentes o fazem tão bem em seus testemunhos, também me emociono ao relatar o meu. Mesmo enquanto escrevo esse texto, as lágrimas tomam conta, provocadas pela lembrança da compreensão mais encantadora que eu poderia ter tido sobre minha própria existência nesse mundo.

Portanto, senhores fanfarrões religiosos, não só existem ateus convictos diante da alta probabilidade da morte iminente. A morte iminente pode, para o espanto de vocês, ser uma ótima circunstância para se encantar com a vida!