Autor: Pedro Vitiello

Máscaras Gregas

Ao definir ateísmo enquanto tragédia torna-se necessário, a fim de tornar clara nossa intenção, fugirmos da definição “leiga” de tragédia. No senso comum, tragédia costuma ser associada a catástrofes e acidentes, situações de desespero pessoal e/ou coletiva sem um fim claro que não o de tornar os personagens e os espectadores miseráveis.

É importante que se diga agora que certamente a utilização de uma metáfora deste tipo só servirá até certo ponto, havendo a quem se dispor a possibilidade e necessidade de critica a esta, a fim de estabelecermos um diálogo mais proveitoso e rico em significados.

No sentido original (grego) a tragédia tinha um aspecto mais complexo e é a este que nos referimos a fim de esclarecermos a comparação. E preciso esclarecer que as tragédias na Grécia eram representações feitas no que depois se tornou o teatro, uma forma de louvar o deus Dionísio e que se caracterizavam em grande parte por sua capacidade de fazer-se sentir para fazer pensar, do que produzir pensamentos a serem traduzidos em sentimentos posteriores. Era uma experiência mais “visceral” que cerebral, ainda que, nem de longe carente de inteligência e complexidade.

Uma outra reflexão possível, para além do presente texto (na qual não me aprofundarei) é que o teatro e a tragédia têm inicio enquanto manifestação religiosa, ou seja, que a tragédia se instaura enquanto farsa, simulação, atuação exatamente para tornar a tragédia real uma “técnica”, um objeto com a qual se torna possível suportar a angustia da tragédia que é o viver, e ao mesmo tempo a mesma se torna “manipulável” ao podermos estabelecer algum controle sobre a mesma.

A Tragédia (teatral) se confunde com a visão religiosa infantilizada de um outro mundo possível, e sobre a irresponsabilidade que temos para com este. Nosso objetivo presente é ir um pouco além das religiões e pensar o ateísmo a partir da tragédia.

Marilena Chauí, em “Introdução à História da Filosofia” (Vol. 1 -2002) apresenta a tragédia como dotada de diferentes aspectos (aos quais inclui alguns comentários):

1) A Tragédia como instituição social: a tragédia era uma manifestação do que se entendia então como um processo democrático (política típica de Atenas onde todos os cidadãos eram iguais perante a Polis (Cidade-Estado), na qual se exprimiam as mudanças do sistema anterior (de cunho oligárquico) e os embates e adaptações graduais sociais para o sistema de maior igualdade social.

As tragédias eram uma forma de estabelecer dialogo entre as diferentes formas de se legislar e se pensar o cotidiano, em geral na forma de trilogias. Funcionavam da seguinte forma: em primeiro lugar era estabelecido um crime horrendo, como um fratricídio ou matricídio, para então, despertada a ira dos deuses, o herói ou heroína trágicos irem em busca de vingança ordenados pelos celestiais como forma de reparação.

A vingança, que em geral apresentava-se como igualmente horrenda, acabava por gerar um segundo direito à vingança da parte de um parente ou cônjuge do primeiro criminoso, o que gerava uma sucessão de vinganças e atos violentos em nome da “vendeta” (termo criado muito posterirmente, mas que traduz em pleno sentido o significado desejado).

Um exemplo atual de como isso ocorre é a troca de atentados e violência entre grupos extremistas de judeus e muçulmanos com atos de terrorismo entre si em nome de uma “prestação de contas” que a outra parte, isoladamente, teria cometido.

Em um terceiro momento os deuses se reuniam a fim de tentar resolver a confusão por eles mesmos criada e definiam que era mais adequado do que se imporem sobre os homens, dar a eles a capacidade de criar leis e de legislar por si mesmos os crimes, a fim de evitar que novas levas de assassinatos e vinganças ocorressem.

2) O Público e o Privado: A dialética entre a lei social (cidade) e privada (família). Naquele momento histórico Atenas, por volta de V a.c., sofria uma modificação social e política drástica onde, após Péricles, estabeleceu-se uma forma de governo e de atuação política que desmembrava o poder de famílias e dos chefes destas famílias, dispersando o poder de decisão entre todos os membros (entenda-se neste momento apenas os homens não escravos) da sociedade.

A tragédia mostra bem os conflitos entre as normas e leis não escritas familiares (mais antigas, legislados pelos deuses) e as leis escritas (o presente de então, democrático e legislado pelos homens).

3) O Herói e a Heroína Trágicos: São figuras de desespero, de dor e sofrimento que vivem seus conflitos entre sua vontade e seu destino. Chauí os apresenta como personagens que nunca sabem o que imaginam saber, e que por ignorância quanto ao seu destino realizam ações que serão a causa de sua própria desgraça. Mesmo dispondo de sinais que os permita compreenderem sua situação, por uma sucessão de erros de sua condição não conseguem se apoderar destes sentidos e tornam sua vontade e ignorância em desgraça.

Também há de se considerar que a tragédia representa uma mudança na percepção do mundo. O que antes era uma unicidade (a Vontade dos Deuses era uma instância única e dissociada que era coerente em si mesma) a tragédia passa a elaborar uma complexidade de valores e significados para o mundo. O mundo não é mais algo ordenado de forma simplória, mas uma justaposição de valores e significados diversos e, muitas vezes, contraditórios.

Assim, a tragédia é uma questão também política (não apenas porque se refere a Polis, mas também entre disputas e diálogos entre diferentes discursos), uma forma de justificativa do atual regime (democracia) sobre o anterior (oligarquia).

Outro aspecto interessante é o recurso que ficou conhecido como “Deus ex Machina” ou “Deus Saído da Maquina”. Este recurso se refere a uma saída que passou a ser usada rotineiramente nas peças de teatro posteriormente na resolução dos conflitos gerados pela trama. O deus (ou Deusa ou Deuses) em questão era um ator fantasiado de uma entidade divina qualquer que aparecia sob efeitos especiais como fogo e fumaça (para caracterizar sua qualidade não-humana) e que sob a forma de milagres ou sabedoria celestiais impunham sua vontade sobre os conflitantes. O termo, criado por romanos, tem uma carga bastante pejorativa nos dias de hoje, denotando, em geral, inabilidade do autor de resolução do conflito de sua obra, que precisa “apelar” a algo extraordinário para dar cabo a esta tarefa.

Ainda que sob alguns aspectos um retrocesso da tragédia padrão (uma vez que dava aos deuses, e não aos homens o poder de resolução de conflitos), era um recurso comum a autores por ser prático e um método econômico de energia mental. Este recurso, de certa forma, é uma negação da tragédia, pois retira dos homens a capacidade de auto-gerenciamento, dando a eles uma “aura de incapacidade” de resolverem seus próprios conflitos, além de ser uma solução que, por ser econômica, se dá sem custos e sem perdas, fundamentais para que se perceba na tragédia, o que o ato de depender de terceiros representa em sofrimento desnecessário.

É importante frisarmos aqui os aspectos “dionisíacos” e “apolíneos” da religião grega antes de continuarmos. Dionísio era um deus que representava uma alegria pela vida e pelos prazeres, pela sensação e pelos momentos (bons ou maus) que caracterizavam certa espontaneidade.

Já Apolo de Delfos era um Deus representado pela frase “Conheça a ti mesmo”, bem como pela produção da verdade enquanto instância oracular. Isto é, a Verdade era uma dádiva que era obtida através da revelação (oráculo), mas que só poderia ser dada a ela o sentido apropriado quando o homem se conhecia. Era um deus da Razão, de certa forma, das idéias puras e de verdade irretocável.

Nietzsche vê nas filosofias de Sócrates e Platão o fim da filosofia (onde muitos outros vêem o começo). Para ele a separação entre ambos os aspectos humanos (Emoção como forma de estar no mundo, e Razão como uma forma de entender o mundo, resumidamente) haviam representado a morte da filosofia. A metafísica e o elogio ao mundo das idéias “puras”, ainda mais especificamente, haviam se transformado no cristianismo que nada seria além de uma “platonização” do mundo para as massas.

Seguindo nossa metáfora, podemos entender que o ateísmo ao mesmo tempo pode e não pode ser entendido como tragédia:

a) Não pode se considerar o pessimismo leigo associado à tragédia. Ateísmo não é uma onda irracional geradora de desespero e tristeza, mas sim o reconhecimento de que estes existem, permitindo que possam ser elaborados como tal e transformados, conforme as possibilidades sociais e pessoais, em soluções de fato e não mera representação.

Tampouco se aconselha seguir a linha da vendeta, ou eterno processo de sucessivas vinganças. Entenda-se aqui uma postura que se coloca contra a forma como o ateísmo de fundo cético tem se propagado.

Não cabe aos ateus mero papel de vingadores da Ciência e da Razão, nem o inglório papel de combatentes do obscurantismo religioso e das “pérfidas forças da irracionalidade”. Pessoas crêem porque a elas cabe maior sentido e conforto na crença. Ainda que não precise se concordar com esta visão, é importante respeito até na discordância. As sucessivas tentativas de combate a idéias pouco ou nada brilhantes, como a pseudociência, quando feita de forma atrapalhada gera apenas mais estereótipos do que o ateísmo e seu primo-irmão, o ceticismo, representam. Não é uma forma que se preste, normalmente, a exposição superficial em programas de televisão indiscriminadamente o público que assista. Antes, se preza a um comportamento mais lento e gradual de transformação, mas não de dominação, do espaço público. Ateísmo facilmente se mostra representado pela truculência e prepotência quando passamos a nos sentirmos donos da Verdade e, tal qual um Oráculo que vomita verdades, nos prestamos a ser uma excentricidade.

b) E Ateísmo pode ser considerado uma tragédia de fato se levarmos em conta não um desprezo pela integridade da vida em valorização a “Verdades” puras e reveladas, sejam do mundo ou de si mesmos, mas sim como um processo “humano, meramente humano”, onde falhas são admitidas como parte do preço da ignorância, e que a busca pela diminuição desta ignorância é o que dá o sentido para sua existência.

Além disso, o ateísmo prima pela complexidade. Não define o mundo (ou não deveria fazê-lo) em tons de preto e branco, mas dá a ele tons de cinza e coloridos. Não precisa dividir o mundo entre Religiosos e Não-religiosos, mas sim entre vivos com diferentes percepções, em uma busca por integrá-las, ainda que nunca perfeitamente, de forma razoavelmente plausível. Opta (ou deveria) pela convivência e não pelo conflito per si.

Ateísmo pode significar prazer de viver. Não por outra razão senão a de que esta é a única chance que temos, e não com tristeza pelos desejos não-realizados em um mítico paraíso, mas pela alegria de saber disso. 

Ateísmo é, ainda, político. Entender isso é algo fundamental e normalmente deixado em segundo plano nas discussões sobre o tema. Ele representa uma alternativa mais relacionada à democracia e ao anarquismo (no sentido da ausência de poder centralizador, entre outras coisas, possibilitado pela responsabilidade individual), mas do que à oligarquia e tirania. É uma fonte libertária em sua proposta, estabelecendo a igualdade e humanismo como fonte de sua atividade. Ele retorna às pessoas suas responsabilidades e deveres, seus direitos e prazeres, suas escolhas e sua vida.

Ateísmo, para mim, só é viável enquanto defensor do laicismo. Não pode defender a supremacia de uma crença ou de sua ausência sobre as demais, ainda que possa aceitar sua influencia sobre procedimentos éticos. Em miúdos, isto significa que não devemos nos utilizarmos da qualidade de ateus para recebermos votos ou constituirmos partidos. Sem slogans do tipo “Ateu vota em Ateu”. Antes, devemos nos valer (e aprimorar) alternativas éticas que o ateísmo apresenta como forma de promoção social de igualdade, como modelo democrático onde, ainda que não possamos eliminar figuras de poder centralizadoras de uma vez por todas, podemos, pelo menos, minimizar sua importância promovendo e assumindo o máximo de responsabilidades sobre seu próprio destino e vontades que nossa vida permitir.

São históricas as relações entre religiões e poder político. Mesmo o ateísmo, mal empregado, pode servir como instrumento de cerceamento de direitos. É preocupante a tendência de alguns ateus proeminentes que parecem querer transformar a causa do ateísmo em uma espécie de cruzada inversa. Temos o direito a não-crença na mesma medida que outros tem de crer.

Entender que dependemos apenas de nós mesmos e que vivemos na absoluta ausência de uma instancia superior moralizante não é concordar com Dostoievski (” Se não houver um Deus, tudo é possível”), mas sim, em contrário, o entendimento de que nossas ações podem ter conseqüências às quais não sabemos os resultados concretos e, exatamente por isso, devemos ser cuidadosos no agir.

A ausência de um Deus não é um clamor à irresponsabilidade, mas a constatação de que nossas ações não fazem parte de nenhum plano prévio e, portanto, o desfecho social e biológico de nossa falta de critérios na direção de nossos atos é particularmente perigoso, pois não há necessariamente final feliz nos esperando se nos comportarmos bem, mas se não formos responsáveis, certamente, a tendência é ir de mal a pior.

Se a tragédia gera inquietude perante nossa desimportância, ela também é capaz de ensinar que dependemos dos outros e do meio em que vivemos bem mais do que nos sentimos bem em fazê-lo. Que temos uma desimportância do pior tipo: não somos capazes de produzir o Bem sozinhos e dependemos de outros para nos ajudar nesta tarefa, ao mesmo tempo em que, solitários, podemos, sim, causar estragos bem maiores a longo prazo do que quaisquer bem que façamos. 

Ser ateu é ser consciente de sua finitude esmagadora, mas ao mesmo tempo clarificadora. De sua incompleta existência bem como de uma medida mais exata do que não serve para, assim, direcionarmos energia e empenho para ações mais significativas.

Somos protagonistas de nosso destino, e por não existir um diretor, com as personas sob suas rédias e olhar zeloso, nem texto previamente decorado (e muito menos um Deus Ex Machina para solucionar de forma eficaz, ainda que pouco criativa, o Kaos instaurado), dependemos de nossa capacidade de improviso que busque de forma ampla os problemas, que abra a visão e o entendimento de cada ação e que responsabilize a um e a todos por si mesmos e pelo próximo.

Ser ateu significa abandonar a segurança paterna, que na verdade nunca existiu, e nos atermos à responsabilidade de nos criarmos e definirmos agora o que queremos, de repensarmos e melhorarmos planos amanhã, de conhecermos e decifrarmos o que somos, o que queremos, para onde podermos ir, bem antes de nos devorarmos. 

Ateísmo é um processo histórico de amadurecimento. Não necessita solicitar supressão temporal de costumes e filosofias, de significados e respostas, mas pode se permitir a cada dia novas e melhores respostas, novos pensamentos. Não deve ser sinônimo de fechar significados, mas aprofundar os mesmos. Não é limitador, mas uma ferramenta de libertação. Pois sua liberdade é a do prazer na vida, valorizando-a e, por conta disso, buscando melhorá-la. Ateísmo não é utopia.

Não ter fé em Deus significa ter esperança. Esperança de que, dependendo tão somente de nós, nossa espécie será capaz de vencer a si mesma, o que é seu maior desafio.

A partir do momento que percebemos que nossos demônios somos nós mesmos, é que se torna possível ao menos um empate honroso, que permita que o mínimo de conquistas seja mantido. E, com sorte, nos mantenhamos a salvo pó mais um milhãozinho de anos.

A Tragédia verdadeira é a de que tudo o que precisamos para isso esteja ao nosso alcance, ao mesmo tempo em que, exatamente por isso, esteja tão longe.